sexta-feira, 29 de julho de 2011

O “complexo Deus” da modernidade



Por Leonardo Boff, teólogo e professo.r emérito de ética da UERJ
A crise atual não é apenas de escassez crescente de recursos e de serviços naturais. É fundamentalmente a crise de um tipo de civilização que colocou o ser humano como “senhor e dono” da natureza (Descartes)


A crise atual não é apenas de escassez crescente de recursos e de serviços naturais. É fundamentalmente a crise de um tipo de civilização que colocou o ser humano como “senhor e dono” da natureza (Descartes). Esta, para ele, é sem espírito e sem propósito e por isso pode fazer com ela o que quiser.
Segundo o fundador do paradigma moderno da tecnociência, Francis Bacon, cabe ao ser humano torturá-la, como o fazem os esbirros da Inquisição, até que ela entregue todos os seus segredos. Desta atitude se derivou uma relação de agressão e de verdadeira guerra contra a natureza selvagem que devia ser dominada e “civilizada”. Surgiu também a projeção arrogante do ser humano como o “Deus” que tudo domina e organiza.
Devemos reconhecer que o Cristianismo ajudou a legitimar e a reforçar esta compreensão. O Gênesis diz claramente: “enchei a Terra e sujeitai-a e dominai sobre tudo o que vive e se move sobre ela” (1,28). Depois se afirma que o ser humano foi feito “à imagem e semelhança de Deus” (Gn 1,26). O sentido bíblico desta expressão é: o ser humano é lugar-tenente de Deus e como Este é o senhor do universo, o ser humano é senhor da Terra. Ele goza de uma dignidade que é só dele, o de estar acima dos demais seres. Dai se gerou o antropocentrismo, uma das causas da crise ecológica. Por fim, o estrito monoteísmo retirou o caráter sagrado de todas as coisas e o concentrou só em Deus. O mundo, não possuindo nada de sagrado, não precisa ser respeitado. Podemos moldá-lo ao nosso bel-prazer. A moderna civilização da tecnociência encheu todos os espaços com seus aparatos e pôde penetrar no coração da matéria, da vida e do universo. Tudo vinha envolto pela aura do “progresso”, uma espécie de resgate do paraíso das delícias, outrora perdido, mas agora reconstruído e oferecido a todos.
Esta visão gloriosa começou a ruir no século XX com as duas guerras mundiais e outras coloniais que vitimaram duzentos milhões de pessoas. Quando se perpetrou o maior ato terrorista da história, as bombas atômicas lançadas sobre o Japão pelo exército norte-americano, que matou milhares de pessoas e devastou a natureza, a humanidade levou um susto do qual não se refez até hoje. Com as armas atômicas, biológicas e químicas construídas depois, nos demos conta de que não precisamos de Deus para concretizar o Apocalipse.
Não somos Deus e querer ser “Deus” nos leva à loucura. A idéia do homem como “Deus” se transformou num pesadelo. Mas ele se esconde ainda atrás do “tina” (there is no alternative) neoliberal: “não há alternativa, este mundo é definitivo.” Ridículo. Demo-nos conta de que “o saber como poder” (Bacon) quando feito sem consciência e sem limites éticos, pode nos autodestruir. Que poder temos sobre a natureza? Quem domina um tsunami? Quem controla o vulcão chileno Puyehe? Quem freia a fúria das enchentes nas cidades serranas do Rio? Quem impede o efeito letal das partículas atômicas do urânio, do césio e de outras liberadas, pelas catástrofes de Chernobyl e de Fukushima? Como disse Heidegger em sua última entrevista ao Der Spiegel: ”só um Deus nos poderá salvar”.
Temos que nos aceitar como simples criaturas junto com todas as demais da comunidade de vida. Temos a mesma origem comum: o pó da Terra. Não somos a coroa da criação, mas um elo da corrente da vida, com uma diferença, a de sermos conscientes e com a missão de “guardar e de cuidar do jardim do Eden” (Gn 2,15), quer dizer, de manter a condições de sustentabilidade de todos os ecossistemas que compõem a Terra.
Se partimos da Bíblia para legitimar a dominação da Terra, temos que voltar a ela para aprender a respeitá-la e a cuidá-la. A Terra gerou a todos. Deus ordenou: “Que a Terra produza seres vivos, segundo sua espécie”(Gn 1,24). Ela, portanto, não é inerte, é geradora e é mãe. A aliança de Deus não é apenas com os seres humanos. Depois do tsunami do dilúvio, Deus refez a aliança “com a nossa descendência e com todos os seres vivos” (Gn 9,10). Sem eles, somos uma família desfalcada.
A história mostra que a arrogância de “ser Deus”, sem nunca poder sê-lo, só nos traz desgraças. Baste-nos ser simples criaturas com a missão de cuidar e respeitar a Mãe Terra.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Vocação: discernindo o seu chamado



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"Somos ministros de Deus em nosso trabalho não só quando estamos testemunhando ou falando diretamente de Jesus"
Mordomia é o cultivo dos recursos que Deus fornece. A Bíblia nos diz que um dos mais importantes que Deus nos deu foram nossos dons, aptidões, talentos e habilidades. Um dos sacramentos da igreja medieval era o Sacramento das Ordens Sacerdotais, que dividia o mundo entre “religioso” e “secular”. Aqueles que iam para o ministério em tempo integral nas igrejas como padres, monges ou freiras, estavam em um patamar espiritual completamente diferente daqueles que não iam. Um dos principais objetivos da Reforma Protestante foi suplantar essa visão com o ensinamento bíblico do sacerdócio de todos os crentes (1 Pedro 2.9). Martinho Lutero insistia que todas as formas de trabalho eram chamados que honravam a Deus. Ser um fazendeiro, um artesão ou um artista era uma vocação, um chamado de Deus, tanto quando ser um pregador. Por quê?

Todas as formas de trabalho são uma participação no trabalho de Deus

Deus criou o mundo pelo seu Espírito (Gênesis 1.1-3) e continua a cuidar e sustentá-lo pelo seu Espírito (Salmo 104.30), regando e enriquecendo-o (Salmo 65.9-13) e alimentando e suprindo as necessidades de todos os seres viventes (Salmos 145.15-16 e 147.15-20). De fato, o próprio propósito da redenção é restaurar completa e totalmente a criação material (Apocalipse 21 e 22). Deus ama tanto o mundo que criou que enviou seu Filho para redimí-lo. Esse mundo é, em si mesmo, bom; não é apenas um palco temporário para a salvação individual.
Se o Espírito Santo é não somente um pregador que convence as pessoas do pecado e da graça (João 16.8-11; Tessalonicenses 1.5) mas também um jardineiro, um artista e um investidor na criação que renova o mundo material, não é possível ser mais espiritual e próximo de Deus sendo um pregador do que ser um fazendeiro, um artista ou um bancário. Para dar apenas um exemplo, o evangelismo é um trabalho temporário, enquanto a música é um trabalho permanente. Nos novos céus e nova terra, os pregadores estarão desempregados! Em última análise, o propósito do evangelismo é buscar um mundo em que os músicos serão capazes de executar seu trabalho com perfeição.

Todas as formas de trabalho são meios de servir aos outros

Imagine quanto tempo levaria para fazer você mesmo uma cadeira. Você não teria que só cortar e moldar a madeira, mas também teria que fabricar as ferramentas. Para fazer as ferramentas, teria que buscar os minerais para fazer o metal. Levaria meses, talvez anos, para fazer todas as coisas necessárias para construir a cadeira. Quando você compartilha do trabalho dos outros, entretanto, você pode comprar uma cadeira com o dinheiro equivalente ao número de horas do seu trabalho, não com meses de esforço. Mesmo se você quiser mesmo fazer a cadeira, você pode comprar as ferramentas criadas por outros.
Qualquer trabalho, por conta dos desígnios de Deus, é um serviço. Através do trabalho, edificamos uns aos outros e nos tornamos cada vez mais ligados. Quando cristãos realizam trabalho “secular”, eles funcionam como sal e luz no mundo (Mateus 5.13-16). Agricultura e administração, babás e advogados, medicina e música – todas essas formas de trabalho cultivam, cuidam e sustentam o mundo criado que Deus fez e ama. Somos todos ministros (sacerdotes) da comunidade humana, em nome de Deus.
Trabalho é pegar o material bruto da criação de desenvolvê-lo para o bem dos outros. Músicos pegam o material bruto do som e trazem o significado artístico para nossas vidas. Fazendeiros pegam o material bruto do solo e das sementes e trazem alimento para nossas vidas. Isso significa que somos ministros de Deus em nosso trabalho não só quando estamos testemunhando ou falando diretamente de Jesus, mas quando estamos simplesmente fazendo nosso trabalho. Uma artista está servindo a Deus quando faz boa música, não apenas quando ela está cantando sobre a volta de Jesus.



Fonte:Iprodigo